[ref 1] http://astro.if.ufrgs.br/p1/p1.htm

No exato momento em que escrevo, estou sentado em minha cadeira um tanto imóvel, tomando um café que, por ser líquido, adquire a forma da xícara. Tanto eu em minha cadeira quanto meu café na sua xícara estamos, sem perceber (eu pelo costume e constância e o café por sua falta de consciência), sendo submetidos a uma força que nos atrai para baixo. A força da gravidade é tão uniforme e tão constante ao longo do tempo para nós, humanos na superfície da Terra, e a terra firme é tão serena, imóvel, silenciosa, que é fácil compreender por que o geocentrismo foi uma perspectiva dominante por muito tempo. Dominante pelo menos na Europa durante a Antiguidade e Idade Média, mas é a história da Europa que costumamos levar em consideração (essa frase não foi um endosso, mas um lamento).

Uma das explicações geocêntricas mais completas e eficientes sobre o movimento dos planetas no céu é o sistema ptolomaico, cujo nome remete ao astrônomo grego Claudio Ptolomeu (150 d.C.). Lendo sobre o pensamento grego da época podemos pensar que parecia haver uma predileção (justificada) por círculos, que são formas que apresentam uma simetria muito grande, círculos e esferas aparecem diversas vezes na natureza por razões diversas. Círculos e esferas são realmente maravilhosos. Parece uma boa ideia propor que a Terra está no centro de tudo e os astros, pequeninos, lá longe, giram em torno da terra em trajetórias circulares.

Mas o movimento dos planetas claramente não apresenta um movimento circular. Pois, se acompanharmos suas posições em relação às estrelas, vemos que os planetas não seguem diretamente para o leste (que parecem mover-se muito mais devagar e em direção oposta ao sol, que move-se do leste para o oeste) mas às vezes eles recuam um pouco para, então, seguir a sua trajetória (esse fenômeno é conhecido como movimento retrógrado). Ptolomeu propôs que as órbitas não eram somente circulares, mas eram uma combinação de dois círculos, um círculo percorrendo o outro círculo e o planeta percorrendo este segundo círculo.

Ilustração do movimento retrógrado

Verificou-se que essa proposta se adequava muito melhor à trajetória dos planetas, então essa interpretação passou a ser considerada válida. Válida até o momento em que realizaram-se observações mais precisas e verificou-se que considerarmos três círculos, esse ajuste seria ainda melhor para algumas órbitas. Esse modelo servia muito bem para prever a posição dos planetas e, com exceção de pequenas alterações nos valores específicos das velocidades, raios e número de círculos, o modelo sobreviveu por cerca de 1300 anos sem mudanças significativas para ser então proposto o modelo heliocêntrico.

[Fim da ref 1]

Apesar de sabermos hoje que o movimento dos planetas não é relacionado com círculos conectados a outros círculos nem ser ao redor da Terra, o modelo de Ptolomeu funcionou muito bem para prever as órbitas e funcionaria mesmo que as órbitas fossem muito mais erráticas. Praticamente qualquer modelo ou órbita que existisse poderia ser adequada com bastante precisão ao modelo de Ptolomeu, pois podemos descrever a maioria dos movimentos periódicos como combinação de movimentos de círculos. Mas como sabemos disso e como isso funciona?

[ref] Aula do Brietzke - http://www.mat.ufrgs.br/~brietzke/textos/secao17_2011_2.pdf **

Sabemos disso devido aos trabalhos iniciados pelo matemático francês Joseph Fourier, cujos trabalhos trouxeram luz sobre as funções periódicas, suas propriedades e como transformá-las em somas de funções trigonométricas.

Para não entrarmos muito em tecnicalidades matemáticas, vamos pensar que apesar de haverem diferenças nos exemplos citados a partir de aqui, o ajuste das curvas feitas no céu têm uma lógica semelhante a que vamos tratar a seguir (pois falaremos de gerar “qualquer” órbita a partir de rotação de diversos círculos). Apesar de não entrar muito nas tecnicalidades, precisamos fazer algumas afirmações muito importantes para mantermos um mínimo de rigor e falarmos em termos mais claros, por isso não se assuste caso o parágrafo a seguir parecer outra língua se você não tem alguma familiaridade com cálculo (se você é estudante de física ou engenharia no fim da graduação, pode se assustar).

Pensemos numa função, f(x), periódica com período 2L (isto é f(x) = f(x+2L) para todo x), contínua por partes e com derivada primeira também contínua por partes (ou seja, em um intervalo finito, possui finitas descontinuidades). Com esse tipo de função já podemos fazer a maioria das curvas que comumente encontramos como função de x. Fourier mostrou que para esse tipo de função, podemos escrever uma série de Fourier que converge para f(x) para todo x que não seja descontinuidade. De maneira bastante informal, mas sem nada de fantasioso, uma série de Fourier é uma soma muito esperta de senos e cosenos que se tornam igual a função original. Para esse tipo de função, o período da função trigonométrica com maior período será 2L, as demais funções terão períodos que serão divisões de 2L por inteiros.

Uma função seno pode ser pensada como uma função que mostra a altura de um ponto na extremidade de uma roda em relação ao centro da roda (ou seja, vale 1 quando o ponto está acima do centro da roda e vale -1 quando está abaixo, vale zero quando está ao lado do centro da roda), essa função sobe e desce porque é como se a roda estivesse girando em uma direção. Aqui é que entra o círculo na nossa estrutura (por motivos como esse um círculo girando e uma função seno estão realmente intimamente relacionados). Voltando para o nosso exemplo do sistema ptolomaico, isso significa que veríamos exatamente o formato de uma função seno caso uma esfera brilhante estivesse presa a um círculo girando com velocidade constante (como em uma roda gigante) que se mantivesse sempre perpendicular a nós por estar presa em um outro círculo (concêntrico à Terra) que gira com velocidade constante.

Ilustração mostrando um exemplo de órbita

Como o seno e o coseno são projeções relacionadas à círculos e, segundo o que foi introduzido por Fourier, podemos escrever praticamente qualquer função como senos e cosenos com velocidades e amplitudes diferentes, concluímos que qualquer órbita que enxergamos no céu pode ser expressa como combinações de círculos com velocidades e diâmetros diferentes. Com a Transformada de Fourier conseguimos descobrir os diâmetros dos círculos necessários para cada velocidade diferente e já sabemos que o período da órbita será o maior período, os outros períodos serão divisões do período da órbita por inteiros.

Que legal, mas o que isso tem a ver com o som?

Vimos que o som pode ser entendido como uma função da pressão do ar que depende do tempo, portanto é uma função que pode ser expressa como soma de senos e cosenos. Ou seja, com a Transformada de Fourier conseguimos perceber que cada som de certa frequência (que está relacionado com o período como no caso dos círculos) é composto por uma soma de sons em forma de seno com a mesma frequência, com o dobro da frequência, o triplo, e assim por diante. Como na onda quadrada da ilustração a seguir (na qual o “dobro da frequência fundamental” tem amplitude zero, por isso nao aparece, e temos o triplo e os outros múltiplos ímpares da frequência. Nesse exemplo, a amplitude diminui três vezes, cinco, e assim por diante):

animacao onda quadrada

(Ilustração obtida do Wikimedia Commons, por cmglee)

O gráfico que costumamos apresentar mostra a intensidade de cada uma dessas senóides que compõem o som que estamos ouvindo. Dessa forma, conseguimos saber informações sobre o timbre de um som, pois com proporções diferentes das frequências dos senos e cosenos (que podemos chamar de componentes), o som tem uma forma de onda diferente e, por isso, um som diferente. O som de uma flauta doce, por exemplo, possui a componente de menor frequência com muito mais amplitude do que todas as demais, portanto podemos considerar um som “puro” (porque apenas um seno já consegue representá-la bem). No exemplo da onda quadrada, temos a frequência fundamental (a mais lenta) com maior amplitude, o dobro da frequência não aparece, o triplo tem amplitude três vezes menor, e assim por diante.

Podemos ter um som que permanece com o mesmo timbre mas ouvimos ele em intensidades diferentes. O que está acontecendo? A amplitude total da onda está sendo reduzida, e suas componentes estão diminuindo proporcionalmente. Por esse motivo, dizemos que o responsável pelo timbre é, essencialmente, a estrutura fina. Essas alterações na amplitude perceptível (no “volume”) do som são expressas por uma função que chamamos de envelope, pois ela envolve o som aumentando ou reduzindo seu volume.